quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Criacionismo: Engano ou má fé?


Criacionismo: Engano ou má fé?
# Marcus Vinícius
Criação ou evolução? Formulado no século XIX, este dilema começou por dividir o campo da ciência. Em pouco tempo, porém, as hostes se definiram melhor: de um lado os crentes, firmes em sua fé na criação, horrorizados com a nova heresia; do outro os cientistas afirmando a evolução.
Hoje o dilema está superado. Salvo raras exceções, as pessoas esclarecidas admitem a evolução. Algumas dão ao processo evolutivo uma interpretação materialista e ateística; outros o concebem como conduzido por Deus criador. A maioria, talvez, adota uma posição agnóstica, ou simplesmente não formula o problema, ou ainda assume uma atitude algo “esquizofrênica”: por tradição ou vivência cristã, acredita na criação, ao mesmo tempo em que, no plano dos estudos e das pesquisas, aceita a evolução. Este é, provavelmente , o caso mais comum no Brasil.
Acerca de dez anos, porém, tomou forma nos Estados Unidos um novo movimento, o criacionismo. Recusando o progresso da ciência, da exegese bíblica e da Teologia, ele exumou o velho dilema “criação X evolução”, para apresentá-lo sob nova roupagem. Defensores intransigentes da primeira alternativa, seus adeptos ameaçam com as chamas do inferno os que admitem a evolução.
O criacionismo moderno não se limita a defender a criação do universo e da vida por Deus. Atribui-se foro de teoria cientifica e sustenta ser possível demonstrar – por meio de disciplinas como a física, a astronomia, a geologia, a paleontologia e outras – que a Bíblia está certa também do ponto de vista cientifico. Pretende, assim, provar que o mundo foi efetivam, ente criado em seis dias de 24 horas; que a criação ocorreu cerca de seis mil anos (solares) atrás; que todas as espécies foram criadas diretamente por Deus; que as camadas rochosas sedimentares foram depositadas pelo Dilúvio, tendo os fósseis sidos as vitimas dessa catástrofe planetária recente.
Se os criacionistas “liberais” se limitam a afirmações desse naipe, os “de centro” acrescenta-lhes uma fé cega no geocêntrismo, tese cada vez mais freqüentemente defendida em congressos criacionistas. E, para constrangimento dos próprios “liberais”, a ala extremista ou radical chega a defender – nos Estados Unidos, por exemplo – a idéia de que, como a Bíblia sugere, a terra é plana!
                Ali onde tem força suficiente para tanto, os adeptos do movimento exigem das autoridades que a criação e as “teorias” criacionistas sejam ensinadas nas escolas, não só nas aulas de religião como nas de ciências, com o mesmo destaque dado à teoria da evolução.
Poucos, mas barulhentos e fortemente organizados, os criacionistas servem-se com arte dos meios de comunicação social, adotando o estilo agressivo das seitas maximalistas, que podemos ver também no Brasil, em muitos programas de televisão. Tirando proveito da fé simples de grandes camadas da população, da confusão e falta de síntese reinantes na área e de pesquisas estatísticas mal – conduzidas, conseguem ser vistos, em alguns países, como os defensores de uma maioria silenciosa, tiranizada pelos cientistas “oficiais”.
Convém, portanto, distinguir cuidadosamente entre criacionismo e fé na criação. Criacionismo é fé racionalista, e portanto suspeita. Não lhes bastando a fé humilde e nua no Deus desconhecido (que é a fé de Abraão, de Jesus e das Igrejas), nem as discutidas provas filosóficas (como as de são Tomas de Aquino), os criacionistas pretendem demonstrar Deus, o invisível, como se demonstra um teorema. Reduzem assim o espaço da verdadeira fé e, aparentemente, abrem a porta para a razão, a demonstração empírica. Parece uma volta ao século da luzes. Mas que luzes?
Um exame das publicações populares dos raros artigos científicos dos criacionistas revela métodos de pesquisa primitivos e extravagantes, afirmações gratuitas e repetitivas, um forte preconceito ideológico. O estilo é freqüentemente o da polêmica, das insinuações, da dúvida metódica sobre a honestidade moral e cientifica de pesquisadores reconhecidos, sistematicamente apresentados como escamoteadores de fatos e fraudadores, inimigos da fé, ateus despudorados.
No recente caso do arqueopetérix, por exemplo, alegaram que o fóssil fora forjado.  Gostam também de trazer à baila o “homem de Piltdowwm” – este sim uma fraude, como o demostrou o evolucionista inglês K.P. Oakley - , tentando, malignamente, atribuir o engodo a Teilhard de Chardin ou outros evolucionistas. Evocam também o caso do “oportuno” desaparecimento, em 1941, dos esqueletos “evidentemente falsos” dos sinantropos encontrados em Chu-Ku-Tien, perto de Pequim. Fingem ignorar que novos crânios e outros ossos foram descobertos nas últimas décadas por cientistas chineses (entre os quais um fraguemento que se encaixa perfeitamente no molde de um dos crânios desaparecidos durante a Segunda Guerra mundial).
Mas o ás na manga dos criacionistas são as pegadas humanas fósseis que alegam ter encontrado junto a pegadas de dinossauros, no leito do rio Paluxy, no Texas. Livros antievolucionistas trazem incontáveis fotografias dessas pegadas que, provando que os dinossauros e o homem primitivo foram contemporâneos, poriam por terra toda a paleontologia.
Em 1986, estive no rio Paluxy.  As pegadas de dinossauro são autênticas, numerosas e lindas. Pegadas humanas, não vi. Algumas das assim consideradas pelos criacionistas são pistas mal preservadas ou erodidas de dinossauros: cavidades vagamente elípticas, que de humano não tem nada. Outras são séries irregulares de buracos sem detalhes morfológicos, de tamanho variado, sem constância de passada, ângulo de passo e outros parâmetros, os icnólogos David H. Milne e Steven D. Scharfersman haviam demostrado que aquelas pegadas em que de fato se podiam discernir características de rastro humano – artelhos, talão e demais detalhes morfológicos - , só tinham assumido tal aspecto nos últimos anos: caso inédito de evolução rápida de pegadas fósseis? De fato, comparando as fotos de pegadas (apelidadas “pegadas Morris”) reproduzidas em livro do criacionista C.N.Dougherty, de 1971, com aquelas, das mesmas pegadas, publicadas em 1980 por I. D. Morris, outro criacionista, Milne e Scharfersman demonstraram que as mesmas pegadas que nas fotos mais antigas não passavam de depressões indistintas e rasas, sem dúvida produto de erosão, haviam assumido, em 1980, características de pegadas humanas e eram bem mais profundas. Ao que tudo indica, criacionistas zelosos houveram por bem dar uma mãozinha ao Criador.
A idéia de um mundo em evolução tem raízes em tempos remotos. Heráclito já dizia, na Grécia antiga, que tudo flui, como um rio. A mesma concepção estava presente em Empédocles e Lucrécio. Na passagem do século IV para o século V d.C. , santo Agostinho ensinava, seguindo princípios platônicos e especialmente neoplâtonicos, que havia na matéria forças de desenvolvimento e evolução, as vires seminales.
Durante a Idade Média, em meio à aceitação cabal e um tanto cega do sistema filosófico de Aristóteles, a teologia do mundo ocidental – e com ela a filosofia, a ciência e todas as manifestações do pensamento – desenvolveu o fixismo. Essa posição, que propõe uma visão estática da realidade, afirma que o mundo foi criado tal com é, e que todas as espécies viventes foram criadas diretamente  pelo Criador, assim como são e podemos vê-las.
Introduzido na Renascença e desenvolvido na Idade Moderna por sábios e pesquisadores como Bacon, Descartes, Copérnico e Galileu, o método empírico veio solapar essa concepção das coisas como inertes e desvendar uma realidade muito mais complexa. Isso não ocorreu sem grandes conflitos. Ocaso mais grave, depois do de Galileu, foi o da evolução biológica.
Quando Charles Darwin anunciou, em 1859, que todas as espécies atuais, animais e vegetais, derivam por evolução de outras mais simples e primitivas, eclodiu uma grande polemica, que dividiria ao longo de decênios o mundo da cultura e da ciência.
Em primeiro lugar A Igreja Anglicana, seguida pelos bispos luteranos alemães e depois pela Igreja Católica, bem como pelas demais, consideraram a teoria um disparate, uma ofensa a verdade revelada, consignada nas Sagradas Escrituras, um sinal da decadência humana.
Após Darwin, durante um século, o estudo da evolução foi se aprimorando e vingando, principalmente por meio das experiências genéticas e das pesquisas paleontológicas. As teorias e intuições básicas de Darwin têm sido plenamente confirmadas.
Uma síntese madura entre a visão evolucionista e a fé cristã foi tentada com notável sucesso por Pierre Teilhard de Chardin (1881 – 1955). Esse jesuíta Frances, paleontólogo de vertebrados, considerava a evolução um dos fenômenos fundamentais da natureza e a chave de ouro para compreendê-la. Homem do nosso tempo, dizia, é aquele capaz de ver as coisas em movimento rápido e vital, na grande correnteza do tempo, do dinamismo, da vida.
O mundo se apresentava a esse pensador como um longo e maravilhoso processo evolutivo, fruto e sinal do poder de Deus criador. Na evolução do universo (cosmogênese) inseri-se a origem e a formação da vida (biogênese) e o homem (antropogênese). Esta última não se esgota em sua evolução biológica, psicológica e cultural: completa-se na cristogênese, a vinda do Cristo, e na posterior “cristificação” da humanidade, que se torna seu corpo no mistério. O Cristo um dia entregará ao Pai a humanidade, a vida, o universo inteiro, no que será a plenitude da criação e da evolução em Deus (o Pleroma). Dizia Teilhard de Chardin, em Comment je crois(1934): “creio que o universo é uma evolução. Creio que a evolução tende a Deus.”
Abrir caminho para permitir o encontro entre ciência e fé no homem e na cultura moderna, mostra que podemos ser ao mesmo tempo “filhos do céu” e “filhos da terra”, esse foi o objetivo da sintese que Teilhard de Chardin empreendeu. Mas ela tem seus limites. Os principais talvez sejam a acentuada dependência do idealismo hegeliano, que traz consigo o perigo do imanentismo (por Deus e o mundo no mesmo plano) e um otimismo exagerado. Os cientistas de hoje não acatariam alguma de suas hipóteses cientificas e os teólogos questionariam algumas de suas idéias teológicas. É incontestável, porem, o mérito de Teilhard por ter trilhado um caminho novo, que nos mostrou a possibilidade de sermos pessoas de cultura moderna e gente de fé; de crermos na evolução e no progresso e, ao mesmo tempo, em Deus, motor da evolução, fonte da vida.
A síntese do grande pensador não encontrou na Igreja uma acolhida entusiástica. Algumas de suas proposições foram declaradas errôneas. Proibiu-se que seus livros fossem vendidos nas livrarias católicas ou comprados pelas bibliotecas eclesiásticas. Sua teoria não podia ser ensinada nos seminários. Gradativamente, porem, suas idéias foram sendo assimiladas. Nos documentos do concilio Vaticano II (1962-1965) há várias referencias implícitas a obra suas. Hoje, excetuando-se alguns bolsões menos cultos ou mais conservadores, as teorias evolucionistas são tranquilamente aceitas na Igreja Católica, bem como na maioria das Igrejas Evangélicas históricas. Teilhard de Chardin e seu pensamento são vistos com extrema simpatia tanto pelos meios científicos como pela maioria das escolas teológicas.
A tranqüilidade com que a maioria das Igrejas mais antigas encara a teoria da evolução e a ciência em geral deve-se em boa parte, a uma compreensão cientifica das Escrituras. Decênios de estudos de alto nível sobre a Bíblia e o mundo nela refletido, desenvolvidos em dezenas de universidades religiosas, principalmente luteranas e católicas, revolucionaram a interpretação e a compreensão de seus textos, mostrando a compatibilidade entre estes e ciência.
De fato, a interpretação medieval da Bíblia, literal, não corresponde AA tendência mais tradicional da Igreja. A maioria dos “padres da Igreja” – autores eclesiásticos dos primeiros séculos da nossa era – interpretava a Bíblia com notável liberdade. Era o que, aliás, fazia Jesus – refletindo a prática de seu tempo e de seu povo – e Paulo, sendo que este espelhava um estilo mais técnico, próprio das escolas rabínicas de Jerusalém e da diáspora. Certos textos clássicos da antiga literatura judaica rabínica referente à Bíblia surpreendem pela enorme liberdade de interpretação de que gozavam os exegetas, respeitadas, é claro, normas técnicas e tradicionais bem definidas. No mundo cristão, destacou-se especialmente, pela liberdade de interpretação no sentido alegórico, a escola de Alexandria.
No final do século XIX, sobretudo na Alemanha, e em muitos países já no século XX, as escolas bíblicas cristãs foram redescobrindo que a leitura literal do texto bíblico não é uma leitura fiel, porque esta sujeita a condicionamentos culturais e psicológicos do nosso tempo, distante e diverso dos tempos bíblicos. As Escrituras devem ser entendidas em seu contexto, com base em estudos do ambiente geográfico, da flora, da fauna, da agricultura, das estruturas políticas, econômicas e sociais, da cultura, das formas literárias, das instituições, tradições e mentalidades.
É preciso ter presente, ainda, que a Bíblia é uma verdadeira biblioteca, com dezenas de gêneros literários diferentes, em textos de autores de diferentes regiões, séculos, culturas e línguas, que devem ser lidos de maneira própria.
Os primeiros 11 capítulos do Genesis e outros textos bíblicos que abordam o tema da criação assumem formas literárias variadas: sagas, mitos (raros), genealogias, cânticos, hinos, listas, textos filosóficos e muitas outras. Genesis 1 é uma prosa litúrgica e didática de louvor e reflexão, com estrutura literária complexa em estrofes e estribilhos, para ser rezada ou cantada nas sinagogas. Genesis 2 é uma reflexão teológica e filosófica sobre as origens do mundo, do homem e de muitas outras coisas, fundada em elementos simbólicos e míticos comuns, às culturas da Mesopotâmia, Síria e Palestina dos 3º e 2º milênios a.C. Ler estes dois capítulos “literalmente” e interpretá-los como textos estritamente históricos ( ou pior, como textos científicos validos hoje do ponto de vista astrofísico, geológico e biológico, como querem os criacionistas) é trair por completo o que se pretende defender e  fazer pouco caso da intenção divina. Santo Agostinho de Ipona, filósofo, teólogo e exegeta, já escrevia: “Nunca ouvi falar que o Senhor tenha dito: Eu vos enviarei o Espírito Santo para que vos ensine o movimento do sol e das estrelas. Não queria fazer matemáticos, e sim cristão.”
Bibliólatras que são, seria desejável que os criacionistas fizessem uma leitura mais cuidadosa da Bíblia. Encontrariam então, já em Genesis 1, várias frases que por certo não podem ser ser interpretadas no sentido criacionista e fixista. Leriam, por exemplo: “Deus disse: Produza a terra plantas, ervas que contenham sementes e arvores frutíferas que dêem fruto segundo a sua espécie e o fruto contenha a sua semente. E assim foi feito. A terra produziu plantas...”  Textos análogos estão presentes nos versículos 20 e 24 do mesmo capitulo, acerca dos animais marinhos e terrestres. Não são textos evolucionistas, é claro, mas testemunham que o autor – refletindo a visão de seu tempo – acreditava no parentesco entre seres viventes e a matéria inorgânica e na unidade fundamental das criaturas. Também o homem vem da terra, vivificado pelo sopro de Deus, como declara a narrativa de Genesis 2, mais antiga, e como o indica o nome Adão ( Adam = homem; admá = terra). É uma constatação a que os antigos semitas chegaram provavelmente a partir da reflexão sobre a morte ( por exemplo, Jó 10:9 :  o que volta a terra vem da terra, e é terra organizada e vivificada).
Seria ainda conveniente que os criacionistas tomassem a sério a palavra do Senhor: “Meu pai opera até hoje, e Eu opero também” (Jo: 5:17); “Ele na é Deus de mortos, mas de vivos, portanto estais muito errados” (Mc.12:27). Como Paleontólogo de vertebrados, como biblista profissional e como crente, acredito esta frase do Senhor pode se aplicar também às espécies: espécies vivas e em evolução, para melhor testemunhar o Deus vivo, criador dos viventes.

#Adaptado por mim. Texto de Giuseppe Leonardi. Revista Ciência hoje nº 34/Pg. 65 – 68.

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